"Precisamos de estar cientes das nossas capacidades, tolerar as diferenças e estar sempre prontos para aprender e nos adaptar."

"Sou da antiga República Socialista Federativa da Jugoslávia. Nasci na Bósnia, vivi na Sérvia e casei com um croata. Vivo em Portugal há 18 anos.

Enquanto crescia, os meus pais ficaram frustrados ao saber que eu era tão apaixonada pelo teatro. Por isso, acabei relutantemente a estudar Direito por um ano na Universidade de Belgrado, na Sérvia. Dois anos antes de começar a universidade, eu apaixonei-me por um escoteiro croata que morava em Sarajevo. Tínhamos um relacionamento à distância por três anos – ele em Sarajevo e eu em Belgrado – e nos casamos quando fiz 20 anos. Fui morar com ele em Sarajevo e dei à luz nossas gêmeas. Também mudei rapidamente meu diploma universitário, de Direito para Teatro em 1990. Infelizmente, a guerra estourou em 1992 e meu sonho se desfez. Estávamos em perigo independentemente de qualquer das tropas que entrassem na cidade porque eu era sérvio e ele era croata. Conseguimos fugir de Belgrado para onde meus pais moravam. Oito de nós morávamos em um apartamento de dois quartos. Continuei estudando teatro na Universidade e com o passar do tempo comecei a desenvolver projetos de teatro infantil e me especializei em teatro infantil. Mesmo tendo muito sucesso, as condições de vida ao meu redor eram difíceis. Os homens foram mobilizados para a guerra, os bens essenciais nos supermercados esgotaram-se e vivíamos constantemente num clima de medo. A OTAN então interveio no país em 1999 e decidimos sair. O meu irmão já tinha estudado em Portugal no âmbito do programa Erasmus Europeu e vivia em Lisboa nessa altura, por isso convidou-nos a ficar com ele. Chegámos a Portugal a 25 de Maio de 1999.

Minhas filhas de oito anos se integraram e aprenderam o idioma muito rapidamente, tornando-se minhas tradutoras. Demorei mais para me adaptar e poder voltar a trabalhar no teatro. Eu não sabia uma palavra de português e pensei que nunca mais conseguiria me apresentar. Comecei por procurar locais onde pudesse trabalhar em inglês e encontrei o pub irlandês na zona do Cais do Sodré. Naquela época, meu marido trabalhava durante o dia em uma empresa de transporte. Parecia que estava tudo bem, mas já estávamos a "quilômetros" um do outro. Nós nos divorciamos um ano depois e ele voltou para a Bósnia. Fiquei sozinho com as minhas duas filhas em Portugal.

Eu sabia que não poderia trabalhar como atriz porque não falava português, mas poderia traduzir minhas peças com alguma ajuda. Acabei traduzindo minha primeira peça e preparando todos os atores portugueses para o espetáculo. Na última hora, uma das atrizes não conseguiu se apresentar e a companhia de teatro me convenceu a aprender as falas em português de cor. Foi assim que comecei a atuar novamente. Foi tão motivador, perceber que as pessoas foram receptivas ao meu trabalho, que acabei aproveitando meu sotaque e o fato de eu me destacar. A partir daí não parei mais. Nessa época comecei o teatro infantil e comecei a dar aulas de teatro. Sou membro da associação Palco de Chocolate, na qual dou aulas de teatro para crianças e jovens. Entretanto, continuo também a representar e a produzir peças com a minha companhia de teatro e faço performances que abordam várias questões sociais. Em 2006 apresentei a história da minha vida numa peça chamada “Eastern Wind” (“Vento Leste”) que se tornou um sucesso nacional e internacional. Foi uma oportunidade de processar a dor causada pela guerra e uma chance de conscientizar as pessoas sobre a triste realidade da guerra.

As minhas duas filhas terminaram os estudos universitários em Lisboa e estão a viver separadas. Um ficou em Lisboa e o outro mudou-se para Belgrado, refletindo a forma como me sinto – dividida entre os dois países. Hoje sinto que pertenço um pouco lá e aqui.

Essas são as consequências da guerra? A guerra é assim, expulsa as pessoas de suas casas e as obriga a colocar a vida inteira numa mala. Cheguei a entender que pode caber, mas é preciso começar a fazer as malas bem antes de qualquer guerra começar. Meus pais me prepararam tão bem que minha mala já estava pronta quando a guerra estourou. A vida é um desafio, por isso não se esqueça de preparar a sua mala, porque nunca se sabe quando vai precisar dela. Precisamos estar cientes de nossas capacidades, tolerar as diferenças e estar sempre prontos para aprender e se adaptar."